A Reforma do Código Civil Brasileiro (PL 4/2025): Uma Análise Detalhada das Alterações em Doações, Testamentos e Heranças

Resumo Executivo

O ordenamento jurídico brasileiro encontra-se em um momento de profunda reflexão e potencial transformação com a tramitação do Projeto de Lei nº 4/2025, que propõe uma ampla reforma do Código Civil (Lei 10.406/2002). Originada dos trabalhos de uma comissão de juristas de alto nível, a reforma visa a modernizar a legislação civil para adequá-la às complexas realidades sociais, tecnológicas e familiares do século XXI. Este relatório oferece uma análise exaustiva das propostas de alteração no âmbito do Direito das Sucessões, com foco específico nas regras relativas à herança, aos testamentos e às doações. A investigação revela uma mudança paradigmática fundamental: a transição de um modelo legal historicamente focado na proteção patrimonial da estrutura familiar para um que prioriza a autonomia da vontade individual e a segurança jurídica. A alteração mais impactante e controversa é a exclusão do cônjuge e do companheiro sobrevivente do rol de herdeiros necessários, uma medida que redefine a natureza dos vínculos matrimoniais e sucessórios, extinguindo a complexa e litigiosa concorrência hereditária, mas, em contrapartida, suscitando um intenso debate sobre a potencial vulnerabilidade econômica do consorte sobrevivente. O relatório disseca as justificativas doutrinárias para essa mudança, as críticas contundentes de outros setores da academia e da sociedade civil, e os mecanismos compensatórios propostos, como o usufruto sucessório. Adicionalmente, a análise aborda a modernização do direito testamentário, com a introdução de formas digitais e audiovisuais de disposição de última vontade, e a regulação da herança digital. Por fim, examina as alterações técnicas no regime das doações, que buscam pacificar controvérsias jurisprudenciais e conferir maior previsibilidade ao planejamento sucessório. O documento conclui que a reforma, se aprovada, representará não apenas uma atualização técnica, mas uma redefinição filosófica do Direito Civil brasileiro, com consequências duradouras para a organização patrimonial e afetiva das famílias no país.


Gênese e Contexto da Proposta de Reforma do Código Civil

Para compreender a magnitude e a direção das mudanças propostas no Direito das Sucessões, é imperativo analisar o contexto que motivou a revisão de um Código Civil com pouco mais de duas décadas de vigência. A iniciativa não surge de um vácuo, mas de um diagnóstico de descompasso entre a lei e a realidade social, tecnológica e jurisprudencial do Brasil. Esta seção detalha o processo de concepção da reforma, desde suas justificativas fundamentais até sua formalização como proposta legislativa.

1.1. A Racionalidade da Modernização: Vetores Sociais, Tecnológicos e Jurisprudenciais

A principal justificativa para uma reforma abrangente do Código Civil de 2002 reside nas profundas transformações que a sociedade brasileira e o mundo atravessaram desde sua promulgação. Na sessão de entrega do anteprojeto ao Senado, o então presidente da Casa, Senador Rodrigo Pacheco, encapsulou essa motivação ao afirmar que, na virada do século, “não existiam redes sociais” e que os arranjos familiares aceitos eram muito mais restritos. Ele descreveu o texto da comissão como uma “bússola” para navegar neste novo cenário. Essa percepção é o cerne da reforma: a lei civil, que rege a vida do cidadão desde antes do nascimento até depois da morte, precisava ser atualizada para refletir um mundo digitalizado, com novas configurações familiares e desafios tecnológicos inéditos.  

O escopo da proposta é vasto, abrangendo não apenas o Direito de Família e das Sucessões, mas também a parte geral do código, a responsabilidade civil, os contratos e o direito empresarial, além de introduzir um livro inteiramente novo dedicado ao Direito Digital. O objetivo declarado é criar um “código civil moderno, ágil, que garanta direitos, que proporcione segurança jurídica”. Isso se traduz em objetivos práticos, como a simplificação de processos burocráticos, a exemplo do divórcio e dos inventários, tornando-os mais acessíveis e menos onerosos para os cidadãos.  

Um vetor crucial para a reforma foi a atividade jurisprudencial, especialmente dos tribunais superiores, que ao longo das últimas duas décadas se viram na contingência de interpretar e adaptar a lei de 2002 a situações não previstas pelo legislador. A reforma, em muitos aspectos, busca codificar entendimentos já consolidados na jurisprudência, conferindo-lhes força de lei e, assim, aumentando a previsibilidade e a segurança jurídica. Portanto, a modernização não é apenas uma resposta a novas tecnologias, mas também um esforço para harmonizar o texto legal com a sua aplicação prática pelos tribunais, resolvendo ambiguidades que geraram extensa litigiosidade. O processo pode ser entendido como um movimento do Legislativo para retomar a primazia na formulação do direito, transformando a adaptação judicial, que se tornou a principal fonte de evolução da lei civil, em uma modernização legislativa formal.  

1.2. A Comissão de Juristas: Composição, Mandato e Processo Deliberativo

A arquitetura da reforma foi confiada a uma Comissão de Juristas, instalada em agosto de 2023 por iniciativa do Senador Rodrigo Pacheco. Composta por 38 renomados membros do universo jurídico, incluindo ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) como Luis Felipe Salomão (que a presidiu), Isabel Gallotti, João Otávio de Noronha, Marco Buzzi e Marco Aurélio Bellizze, a comissão representou um esforço concentrado da mais alta academia e magistratura do país.  

O processo deliberativo foi marcado por um compromisso com a transparência e a pluralidade. A comissão realizou audiências públicas e expediu mais de 400 ofícios a entidades da sociedade civil, faculdades de direito e órgãos públicos, solicitando sugestões para a revisão do código. Essa abertura permitiu que as discussões refletissem as preocupações de diversos setores da sociedade, desde os direitos dos animais até as complexidades da herança digital.  

A participação de membros proeminentes do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), como os professores Flávio Tartuce, Maria Berenice Dias, Mário Delgado, Giselda Hironaka e Rolf Madaleno, foi decisiva para moldar as propostas nos campos do Direito de Família e das Sucessões. Esses especialistas trouxeram para o debate a vasta experiência do instituto em lidar com as transformações das entidades familiares e as insuficiências da legislação vigente. Após 180 dias de trabalho intenso, culminando em um esforço concentrado em abril de 2024, a comissão concluiu e aprovou o texto do anteprojeto.  

1.3. A Trajetória Legislativa: Do Anteprojeto ao PL 4/2025 no Senado Federal

O anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas foi oficialmente entregue ao Senado Federal em 17 de abril de 2024, em uma sessão de debates temáticos. Este documento serviu como alicerce para a proposta legislativa formal. Em 31 de janeiro de 2025, o Senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) protocolou o  

Projeto de Lei (PL) nº 4/2025, dando início à sua tramitação oficial no Congresso Nacional.  

Atualmente, o projeto encontra-se na fase inicial de sua jornada legislativa, com o status de “AGUARDANDO DESPACHO” no Plenário do Senado Federal. O processo de aprovação é bicameral, o que significa que o texto será analisado, debatido e potencialmente alterado tanto pelos senadores quanto pelos deputados federais antes de uma eventual sanção presidencial. A expectativa é que a tramitação se estenda ao longo de 2025, dada a complexidade e a importância das matérias tratadas. Para fomentar o debate público e acadêmico, foi lançado o livro  

A Reforma do Código Civil, uma coletânea de artigos dos membros da comissão que detalha e justifica as propostas apresentadas.  


A Redefinição da Herança: Um Novo Paradigma para o Cônjuge Sobrevivente

O epicentro da reforma no Direito das Sucessões, e sem dúvida seu ponto mais controverso, é a redefinição completa do status sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente. A proposta abandona o modelo de proteção legal estabelecido em 2002 em favor de um sistema que privilegia a autonomia privada e a linhagem consanguínea. Para facilitar a compreensão das profundas alterações, a tabela a seguir apresenta um quadro comparativo direto entre a legislação atual e as propostas do PL 4/2025.

Tabela 1: Quadro Comparativo das Principais Alterações no Direito Sucessório (Código Civil de 2002 vs. PL 4/2025)

Instituto JurídicoDisposição no Código Civil de 2002 (Lei 10.406)Disposição Proposta no PL 4/2025Impacto/Observação Primária
Status do Cônjuge/CompanheiroHerdeiro Necessário, ao lado de descendentes e ascendentes (Art. 1.845).  Deixa de ser Herdeiro Necessário. O novo Art. 1.845 lista apenas “os descendentes e os ascendentes”.  Mudança fundamental. O cônjuge pode ser completamente excluído da herança por testamento se houver outros herdeiros necessários.  
Ordem de Vocação HereditáriaConcorrência complexa com descendentes (dependendo do regime de bens) e com ascendentes (Art. 1.829).  Ordem simplificada e hierárquica: 1º Descendentes; 2º Ascendentes; 3º Cônjuge ou convivente sobrevivente. Fim da concorrência.  Encerra décadas de debate jurisprudencial e litígios sobre a interpretação do Art. 1.829. Prioriza a linhagem consanguínea sobre o vínculo matrimonial.
Mecanismos de ProteçãoA qualidade de herdeiro necessário e o direito a uma quota-parte da herança (legítima).Mecanismos compensatórios: Direito Real de Habitação ampliado e um novo Usufruto Sucessório para o cônjuge vulnerável ou hipossuficiente.  Substitui um direito de propriedade garantido (herança) por direitos de uso e subsistência, condicionados a um estado de necessidade.

2.1. O Quadro Sucessório Vigente (Código Civil de 2002): Um Sistema de Complexidade e Conflito

O sistema sucessório do Código Civil de 2002 representou uma tentativa de valorizar o cônjuge, elevando-o a uma posição de destaque na herança. Contudo, a complexidade da redação legal gerou mais controvérsias do que certezas.

2.1.1. O Cônjuge como Herdeiro Necessário (Art. 1.845)

Atualmente, o artigo 1.845 do Código Civil estabelece que “são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”. Essa classificação confere ao cônjuge uma proteção robusta: ele tem direito a uma porção mínima da herança, a chamada “legítima”, que corresponde a 50% do patrimônio do falecido. Essa parte é intocável, não podendo ser afastada por testamento, salvo em casos excepcionais de deserdação por indignidade.  

2.1.2. O Labiríntico Artigo 1.829: A Concorrência Sucessória

A principal fonte de instabilidade e litígio no sistema atual é o artigo 1.829, que define a ordem da sucessão legítima. Sua redação, descrita pelo jurista Flávio Tartuce como “confusa e longa”, estabelece um complexo sistema de “concorrência sucessória”, no qual o cônjuge herda juntamente com os descendentes ou ascendentes do falecido. A complexidade reside no fato de que a concorrência com os descendentes depende diretamente do regime de bens do casamento. Em linhas gerais, o cônjuge concorre com os filhos sobre os bens particulares do falecido (aqueles que não entram na meação), o que gerou “enormes problemas práticos” e uma torrente de processos judiciais. A interpretação dessas regras pelo Superior Tribunal de Justiça, embora tenha tentado trazer clareza, foi criticada por muitos doutrinadores por, em casos como o da separação convencional de bens, contrariar a autonomia privada das partes, que haviam escolhido em vida não comunicar seus patrimônios.  

2.1.3. A Equalização Sucessória Imposta pelo STF

O cenário tornou-se ainda mais complexo com a decisão do Supremo Tribunal Federal nos Temas 798 e 809 de repercussão geral. O STF declarou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que previa um regime sucessório discriminatório e prejudicial para o companheiro em união estável. A Corte determinou a equiparação completa dos direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros, estabelecendo que as regras do artigo 1.829 deveriam ser aplicadas a ambas as formas de união. Essa decisão, embora tenha corrigido uma injustiça histórica, teve o efeito prático de estender o já confuso sistema de concorrência sucessória também para as uniões estáveis, ampliando o campo de incertezas e disputas.  

2.2. A Reforma Proposta (PL 4/2025): Uma Virada Fundamental em Direção à Autonomia e à Linhagem

A proposta da Comissão de Juristas representa uma ruptura radical com o sistema de 2002, optando pela simplificação e pela clareza, ainda que ao custo da posição privilegiada do cônjuge.

2.2.1. A Exclusão do Cônjuge do Rol de Herdeiros Necessários

A pedra angular da reforma é a alteração do artigo 1.845. A nova redação proposta é sucinta e direta: “São herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes”. A simples omissão do cônjuge e do companheiro tem um efeito transformador: eles deixam de ter uma quota garantida na herança. Passam à condição de herdeiros facultativos, o que significa que só herdarão na ausência de descendentes e ascendentes, ou se forem expressamente beneficiados em testamento pelo falecido.  

2.2.2. A Simplificação da Ordem de Vocação: O Fim da Concorrência

Como consequência direta da exclusão do cônjuge como herdeiro necessário, a reforma propõe uma nova ordem de vocação hereditária, que elimina por completo a concorrência. A redação sugerida para o artigo 1.829 estabelece uma hierarquia clara e excludente: “I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente”. Na prática, se o falecido deixar filhos, toda a herança irá para eles. Se não houver filhos, mas os pais do falecido estiverem vivos, a herança irá para os pais. O cônjuge ou companheiro só será chamado a suceder na totalidade da herança se não houver descendentes nem ascendentes vivos. Essa mudança põe fim a mais de duas décadas de incerteza e litigiosidade, mas o faz ao custo de priorizar a linhagem consanguínea em detrimento do vínculo afetivo matrimonial.  

2.3. O Debate Doutrinário: Uma Análise das Opiniões de Juristas

A proposta de alteração do status sucessório do cônjuge dividiu profundamente a comunidade jurídica, gerando um intenso debate que contrapõe os princípios da autonomia da vontade e da segurança jurídica aos da solidariedade familiar e da proteção aos vulneráveis.

2.3.1. Argumentos Favoráveis à Reforma (Os “Simplificadores”)

Os defensores da reforma, como o professor Flávio Tartuce, relator da subcomissão de sucessões, argumentam que o sistema atual se mostrou ineficiente, confuso e “distante de uma segura e justa pacificação das controvérsias”. A complexidade da concorrência sucessória gerou um volume massivo de litígios entre cônjuges sobreviventes e filhos do falecido (muitas vezes de relacionamentos anteriores), causando perdas patrimoniais e profundo desgaste emocional. A reforma, ao eliminar a concorrência e simplificar a ordem de vocação, traria clareza e previsibilidade, reduzindo a judicialização. Além disso, a mudança é vista como um reforço à autonomia privada, especialmente para casais que optaram pelo regime da separação de bens com o intuito de manter seus patrimônios distintos tanto em vida quanto após a morte, uma vontade que a jurisprudência atual muitas vezes frustra.  

Um fator subjacente e de extrema relevância para a proposição da reforma foi a reação à decisão do STF que equiparou os direitos sucessórios de cônjuges e companheiros. A jurista Maria Berenice Dias, membro da comissão, afirmou que a “grita geral” que se seguiu à decisão do STF levou a uma solução drástica: “excluir o direito do cônjuge para não contemplar o convivente”. Essa perspectiva revela que a motivação para a exclusão não foi puramente a busca por simplificação, mas também uma reação legislativa à extensão de um direito considerado problemático a um novo grupo. Em vez de reformular a concorrência de forma mais justa para ambos, a comissão optou por eliminá-la por completo, resolvendo a “questão do companheiro” ao rebaixar o status sucessório do próprio cônjuge.  

2.3.2. Perspectivas Críticas à Reforma (Os “Protetores”)

Do outro lado, críticos contundentes veem a proposta como um grave retrocesso social. A advogada Bárbara Aparecida Nunes Souza argumenta que a reforma fragiliza os vínculos familiares ao colocar os laços consanguíneos acima da relação afetiva que fundamenta o casamento e a união estável. A principal preocupação é a criação de uma situação de profunda vulnerabilidade econômica para o cônjuge sobrevivente, especialmente em casamentos de longa duração nos quais um dos consortes (historicamente, a mulher) abdicou de sua carreira profissional para se dedicar ao cuidado da família e do lar. Para esses críticos, a meação (a metade dos bens comuns) pode ser insuficiente para garantir a subsistência do sobrevivente, que agora dependerá da elaboração de um testamento para ter direito aos bens particulares do falecido.  

A crítica se aprofunda ao apontar que a medida pode levar ao “empobrecimento feminino”, desconsiderando a contribuição não financeira para a construção do patrimônio familiar. O exemplo prático é alarmante: um casal sem filhos que constrói um patrimônio junto; com a morte de um deles, os bens podem ir integralmente para os pais do falecido, com os quais o cônjuge sobrevivente pode não ter qualquer vínculo, ignorando a parceria de uma vida inteira.  

Essa mudança representa uma alteração filosófica profunda. O sistema atual, ao instituir o cônjuge como herdeiro necessário, opera sob uma presunção de solidariedade familiar, impondo um dever de amparo patrimonial. A reforma abandona essa presunção legal, transferindo o ônus da proteção do Estado para o indivíduo. A proteção deixa de ser um direito garantido por lei e passa a depender de um ato de vontade (o testamento), o que coloca o cônjuge economicamente dependente em uma posição de fragilidade, à mercê da iniciativa do parceiro em formalizar sua proteção.

2.3.3. Avaliação dos Mecanismos “Compensatórios”

Ciente das críticas sobre a vulnerabilidade do cônjuge, a comissão propôs mecanismos para mitigar os efeitos da exclusão. No entanto, esses mecanismos também são alvo de escrutínio.

  • O Usufruto Sucessório: A proposta de redação para o artigo 1.850, §1º, permite que o juiz institua um usufruto sobre determinados bens da herança para garantir a subsistência do cônjuge ou companheiro que “comprovar insuficiência de recursos ou de patrimônio”. A mudança é substancial: troca-se um direito de propriedade (ser herdeiro) por um direito de uso e fruição (ser usufrutuário), e, crucialmente, esse direito não é automático, mas condicionado à prova de necessidade econômica.  
  • O Direito Real de Habitação Ampliado: A reforma mantém o direito do cônjuge de permanecer no imóvel que servia de residência para a família (Art. 1.831), mas introduz novas complexidades. A proposta prevê a possibilidade de o direito ser compartilhado com outros herdeiros vulneráveis (como filhos com deficiência ou ascendentes idosos) e estabelece que ele pode cessar se o titular constituir nova família ou adquirir patrimônio suficiente, o que pode gerar novas frentes de litígio.  

2.4. Repercussões Políticas e Sociais

O debate transcendeu a academia e mobilizou as principais instituições jurídicas do país. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o IBDFAM têm promovido encontros e seminários para discutir a reforma, refletindo a cisão de opiniões dentro da própria advocacia. Mesmo com a participação ativa de seus membros na elaboração do texto, o IBDFAM também se tornou um palco para vozes críticas, evidenciando a complexidade do tema.  

Para a sociedade em geral, a principal implicação prática é a crescente necessidade do planejamento sucessório. Se a reforma for aprovada, a elaboração de um testamento deixará de ser uma opção para se tornar uma ferramenta essencial para qualquer pessoa que deseje garantir a segurança patrimonial de seu cônjuge ou companheiro. A lei não mais oferecerá a proteção padrão; caberá aos casais dialogar e formalizar suas vontades para evitar que o sobrevivente fique desamparado.  


Modernizando a Sucessão Testamentária: Autonomia e Tecnologia

Paralelamente à reestruturação da sucessão legítima, a reforma do Código Civil propõe uma modernização significativa das regras sobre testamentos. O objetivo é tornar este instrumento de planejamento sucessório mais acessível, flexível e alinhado com as tecnologias contemporâneas, incentivando seu uso pela população e reforçando a autonomia da vontade do testador.

3.1. O Testamento no Código Civil de 2002: Uma Tradição de Formalismo

O Código Civil vigente estabelece um sistema testamentário caracterizado por um alto grau de formalismo. As modalidades de testamento ordinário — público, cerrado e particular — exigem uma série de solenidades e requisitos rígidos, como a presença de testemunhas e, no caso do testamento público, a lavratura por tabelião em livro de notas. Esse excesso de formalidade é frequentemente apontado como um dos principais obstáculos para a popularização do testamento no Brasil, sendo percebido como um procedimento caro, burocrático e inacessível para grande parte da população.  

3.2. Inovações Propostas pelo PL 4/2025: Flexibilidade e Desburocratização

A reforma busca reverter esse quadro, introduzindo maior flexibilidade e incorporando a tecnologia para simplificar a manifestação de última vontade.

3.2.1. Expansão da Autonomia Privada

A ampliação da autonomia do testador é um dos pilares da reforma. Conectada diretamente à exclusão do cônjuge como herdeiro necessário, a nova redação proposta para o artigo 1.850 é emblemática: “Para excluir da herança o cônjuge, o convivente, ou os herdeiros colaterais, basta que o testador o faça expressamente ou disponha de seu patrimônio sem os contemplar”. Isso confere ao testador um poder quase absoluto sobre a destinação da parte disponível de seus bens e sobre a herança de herdeiros não necessários. Adicionalmente, a proposta inova ao permitir que o testador destine até um quarto da legítima (a parte dos herdeiros necessários) para beneficiar descendentes ou ascendentes que se encontrem em situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência, conferindo uma nova ferramenta de proteção direcionada dentro do planejamento sucessório.  

3.2.2. A Integração da Tecnologia: O Testamento Audiovisual e as Formalidades Digitais

A inovação mais disruptiva é a validação de testamentos “gravado em sistema digital de som e imagem”. A proposta regulamenta detalhadamente esta nova modalidade, exigindo nitidez na gravação, a declaração da data, e a intervenção simultânea de duas testemunhas, que devem ser claramente identificadas nas imagens. O testador deve verbalizar que aquele vídeo constitui seu testamento, e o arquivo deve ser gravado em formato compatível com programas de leitura comuns à época do ato.  

Além disso, a reforma prevê um “testamento particular excepcional”, que pode ser gravado em áudio ou vídeo sem a presença de testemunhas em circunstâncias extraordinárias declaradas pelo testador. A validade de tal ato dependerá da confirmação judicial de sua autenticidade e da higidez mental do testador, com base em outros elementos de prova. Essas mudanças visam a tornar o testamento um negócio jurídico mais acessível e adaptado à era digital.  

3.2.3. Acessibilidade para Pessoas com Deficiência

Em consonância com a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão, a reforma introduz normas específicas para garantir a acessibilidade testamentária. Pessoas com deficiência visual, por exemplo, poderão testar por qualquer forma, mas o ato deverá ser obrigatoriamente gravado em áudio e vídeo. O testamento poderá ser feito em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), em Braille ou com o uso de qualquer outra tecnologia assistiva, assegurando que a manifestação de vontade seja fiel e autêntica.  

3.3. A Herança Digital: Regulamentando o Patrimônio Intangível

Reconhecendo uma lacuna significativa na legislação atual, a reforma dedica um capítulo inteiro à sucessão de bens digitais. O projeto reconhece expressamente que ativos digitais com valor econômico apreciável integram a herança.  

A proposta estabelece uma distinção crucial entre diferentes tipos de bens digitais :  

  • Bens Digitais Patrimoniais: Ativos com valor econômico direto, como criptomoedas, milhas aéreas, saldos em plataformas de pagamento e perfis em redes sociais que geram receita. Estes se transmitem aos herdeiros legítimos automaticamente, seguindo as regras gerais da sucessão.
  • Bens Digitais Existenciais: Conteúdos de natureza estritamente pessoal e privada, como e-mails, mensagens em aplicativos, fotos e vídeos pessoais. A transmissão destes bens não é automática e depende de disposição expressa em testamento, respeitando os direitos à privacidade e à intimidade do falecido e de terceiros.
  • Bens Digitais Híbridos: Aqueles que possuem tanto valor patrimonial quanto existencial. Nesses casos, a parte patrimonial se transmite aos herdeiros, enquanto a parte existencial segue a regra da disposição testamentária.

Para gerenciar esse novo acervo, a reforma cria a figura do “administrador digital”, que pode ser nomeado pelo falecido em testamento ou pelo juiz para administrar os bens digitais até a partilha, com dever de prestar contas.  

A introdução dessas inovações tecnológicas, embora louvável em sua intenção de modernizar e democratizar o acesso ao testamento, não está isenta de desafios. A validação de testamentos audiovisuais e digitais cria um potencial “apartheid digital” no planejamento sucessório, onde a acessibilidade a essas novas formas depende de um nível de literacia tecnológica e de acesso a equipamentos de gravação e armazenamento seguro que não é universal na sociedade brasileira. Isso poderia, paradoxalmente, excluir populações mais idosas ou de baixa renda dos métodos supostamente “simplificados”. Ademais, transfere-se para o Poder Judiciário um novo e complexo conjunto de desafios probatórios: como autenticar um arquivo de vídeo contra a possibilidade de manipulação digital (“deepfakes”)? Como garantir a preservação a longo prazo de formatos digitais que podem se tornar obsoletos? Como aferir a “higidez das declarações” de um testador em um vídeo caseiro, sem a solenidade e a fé pública de um tabelionato? Ao resolver o problema do formalismo excessivo, a reforma corre o risco de inaugurar uma nova era de incerteza jurídica, desta vez de natureza tecnológica.


Ajustes na Lei de Doações e Seus Efeitos Sucessórios

As alterações propostas para o contrato de doação, embora mais técnicas, são de grande importância para o planejamento patrimonial e sucessório. Elas se alinham ao objetivo geral da reforma de aumentar a segurança jurídica, pacificando controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais de longa data.

4.1. O Regime Vigente das Doações no Código Civil de 2002

O sistema atual de doações possui regras com impacto direto na sucessão, mas cuja interpretação tem sido fonte de considerável debate.

4.1.1. A Doação como Adiantamento da Legítima (Art. 544)

O artigo 544 do Código Civil estabelece uma presunção legal: toda doação feita por um ascendente a um descendente (ou de um cônjuge a outro) é considerada um adiantamento da parte que lhes caberia na herança (a legítima). Para que a doação não seja considerada um adiantamento e, portanto, não precise ser trazida à “colação” no inventário (ou seja, informada para igualar a parte dos herdeiros), o doador deve dispensar expressamente o donatário dessa obrigação no próprio ato de doação ou em testamento.  

4.1.2. A Doação Inoficiosa (Art. 549) e a Controvérsia Jurisprudencial

O artigo 549 considera nula a doação na parte que exceder a metade do patrimônio que o doador poderia dispor em testamento no momento da liberalidade. Essa é a chamada “doação inoficiosa”, que invade a legítima dos herdeiros necessários. A aplicação dessa norma gerou duas grandes controvérsias:  

  1. Natureza do Vício: A doação inoficiosa é um ato nulo de pleno direito (imprescritível) ou anulável (sujeito a prazo decadencial)? A doutrina se divide sobre o tema.  
  2. Momento da Aferição: O excesso deve ser calculado com base no patrimônio do doador no momento do ato da doação ou no momento de sua morte? Essa questão foi objeto de intensa disputa judicial, com o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidando o entendimento de que o momento relevante é o da liberalidade, ou seja, o da doação.  

4.2. Alterações Propostas pelo PL 4/2025: Codificação de Precedentes e Clarificação Conceitual

A reforma busca resolver essas ambiguidades, incorporando ao texto da lei as soluções que se mostraram mais eficazes na prática judicial.

4.2.1. Ajustes na Doação de Ascendentes para Descendentes

A proposta de alteração do artigo 544 promove dois ajustes principais. Primeiro, suprime a referência ao cônjuge, o que é coerente com a sua exclusão do rol de herdeiros necessários e, consequentemente, da concorrência com os descendentes. Segundo, flexibiliza as formas de dispensa da colação, permitindo que o doador o faça não apenas no ato da doação ou em testamento, mas também por meio de uma escritura pública posterior.  

4.2.2. A Doação Inoficiosa: De Nulidade para Ineficácia

Uma mudança conceitual relevante é a proposta de que a doação inoficiosa deixe de ser tratada como “nula” para ser considerada meramente “ineficaz” na parte que exceder o patrimônio disponível. Essa alteração técnica tem o efeito de pacificar o debate doutrinário sobre a natureza do vício e suas consequências, como os prazos para contestação, alinhando o tratamento da doação ao de outras disposições que afetam a legítima.  

4.2.3. A Cristalização do Entendimento do STJ

A mudança mais significativa, no entanto, é a positivação do entendimento do STJ. A reforma propõe incluir no código a regra expressa de que a análise para verificar se uma doação é inoficiosa deve ser feita com base no patrimônio do doador no momento da liberalidade, e não na data da abertura da sucessão (morte).  

Este último ponto exemplifica uma das principais metodologias da reforma em sua totalidade. Em vez de criar um direito inteiramente novo, a comissão optou, em muitos casos, por um caminho pragmático: observar as controvérsias que mais geraram instabilidade e litígios, identificar a solução consolidada pelo tribunal superior responsável por uniformizar a interpretação da lei federal (o STJ) e incorporar essa solução diretamente no texto do Código Civil. Trata-se de um esforço deliberado para reduzir a margem de interpretação e, consequentemente, a litigiosidade, transformando a jurisprudência em lei e conferindo um grau muito maior de certeza e previsibilidade para o cidadão que deseja realizar um planejamento patrimonial e sucessório.


Síntese das Perspectivas e Análise Conclusiva

A proposta de reforma do Código Civil, materializada no PL 4/2025, representa um dos mais ambiciosos projetos de atualização do direito privado brasileiro desde a codificação de 2002. As alterações no Direito das Sucessões, em particular, catalisaram um debate profundo que reflete tensões fundamentais sobre o papel da lei na organização das relações familiares e patrimoniais.

5.1. A Visão da Academia Jurídica: Um Conflito de Princípios

O debate acadêmico em torno da reforma pode ser sintetizado como um embate entre duas visões de mundo. De um lado, juristas que defendem a primazia da autonomia da vontade, da simplificação e da segurança jurídica. Para essa corrente, o sistema sucessório atual é anacrônico, excessivamente complexo e gerador de litígios que corroem o patrimônio e os laços familiares. A reforma, ao eliminar a concorrência sucessória e fortalecer o poder do testamento, é vista como um avanço necessário que alinha o Brasil a ordenamentos jurídicos mais modernos e confere ao indivíduo maior liberdade para dispor de seus bens.  

Do outro lado, posicionam-se os juristas que priorizam o princípio da solidariedade familiar e a proteção dos vulneráveis. Para essa vertente, a exclusão do cônjuge do rol de herdeiros necessários é um retrocesso que ignora a realidade socioeconômica de muitas famílias, nas quais um dos parceiros, frequentemente a mulher, se encontra em situação de dependência econômica. A crítica é que a reforma enfraquece a instituição do casamento e da união estável, privilegiando laços de sangue em detrimento de laços de afeto e de uma vida de construção conjunta.  

5.2. O Cenário Político: O Caminho a Ser Percorrido no Congresso

A tramitação do PL 4/2025 está apenas em seu estágio inicial. A proposta, apadrinhada politicamente pelo Senador Rodrigo Pacheco, que instituiu a comissão e protocolou o projeto, enfrentará um longo e árduo caminho no Congresso Nacional. A complexidade e a sensibilidade dos temas, especialmente as alterações no Direito de Família e Sucessões, garantirão um debate acalorado, com a provável apresentação de inúmeras emendas para alterar o texto original. A participação da sociedade civil, por meio de audiências públicas e de ferramentas digitais como o portal e-Cidadania do Senado, será crucial para moldar o resultado final do processo legislativo.  

5.3. O Impacto na Sociedade: Novos Paradigmas para as Relações Familiares e Patrimoniais

Independentemente do texto final que vier a ser aprovado, a simples existência deste debate já provoca uma reflexão sobre a natureza das relações familiares no Brasil contemporâneo. A proposta de reforma reflete e, ao mesmo tempo, pode acelerar uma mudança na concepção social do casamento e da união estável: de uma instituição vista como uma parceria econômica de vida inteira, com proteção patrimonial garantida por lei, para um arranjo primariamente afetivo, mais fluido, cujas consequências patrimoniais após a morte dependerão cada vez mais de acordos explícitos e de atos de vontade, como pactos antenupciais e testamentos. A reforma impõe uma abordagem mais contratual e planejada das finanças do casal, transferindo a responsabilidade pela proteção mútua da lei para os próprios indivíduos.  

5.4. Conclusão: O Futuro do Direito Sucessório Brasileiro

A reforma do Código Civil proposta pelo PL 4/2025 é mais do que uma mera atualização legislativa; é uma proposta de redefinição dos valores que fundamentam o direito privado no Brasil. No campo sucessório, a balança pende de forma decisiva em favor da autonomia individual e da busca por uma maior segurança jurídica, em detrimento da função protetiva que a lei tradicionalmente exerceu sobre a figura do cônjuge sobrevivente. A escolha que o Congresso Nacional fará ao deliberar sobre este projeto não será apenas técnica, mas profundamente filosófica. O resultado final irá configurar o arcabouço legal que governará a transmissão de patrimônio e a estrutura de proteção das famílias brasileiras pelas próximas gerações, estabelecendo um novo pacto sobre os limites entre a liberdade individual e a solidariedade familiar.

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Cristiane Costa Sociedade de Advogados 2019 | CNPJ: 47.446.384/0001-34  | Todos os direitos reservados.

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